quarta-feira, 25 de janeiro de 2006

Capítulo Trinta - Companheiros

1.
Segunda-feira. O super-herói levanta de mau-humor com o despertador zunindo na cabeça. Meio-dia e já tinha que acordar. No tempo do seu pai (tempo de herói de verdade, com superpoderes e não um monte de tranqueiras tecnológicas) os vilões eram maus que nem hoje, mas pelo menos respeitavam os domingos. Pega o despertador e o esmaga para parar de tocar.
Vai até o banheiro cuspir, limpar remela do olho e tirar água do joelho. Volta ao quarto bagunçado procurar o caderninho de anotações: "comprar despertador novo." Na cozinha toma café amargo, que o açúcar acabou há uma semana e ele já está com vergonha de pedir pra vizinha pela terceira vez. "Comprar assucar" anota. "Assucar tem acento?" pensa. Apanha as contas atrasadas de cima da mesa e sai.

2.
O vilão chega em casa e praticamente desmaia na sua cama de vilão. Além de ter que lutar com aquele paspalho de cueca por cima da calça teve que se matar pra cavar um túnel pra fugir da prisão ("nem sei pra que ainda me colocam aqui se fujo sempre, mesmo... ia me poupar um bom trabalho").

3.
Ao chegar em casa o herói pensa em dormir mas o telefone toca assim que se deita na cama.
-Que é?
-Super, é você?
-Comissário, já pedi pra você parar de me chamar assim, pega mal...
-Tá bem, tá bem... Eu só liguei pra dizer que ele fugiu de novo.
-Mas já?! Essas prisões estão cada vez piores...

4.
-Alô? - diz com a voz pastosa de sono.
-Volta pra lá agora. - diz a voz decidida do outro lado.
-Ah, boa tarde pra você também.
-Corta essa. Volta já pra cadeia.
-Nem morto. Bom, talvez morto. Mas quero ver quem vai me matar...
-Volta agora.
-Deixa de ser chato, tive um trabalhão pra fugir de lá...
-E eu tive um trabalhão pra te prender.
-Mas o bonzinho aqui é você. Você é que devia se importar com o meu esforço.
-Tá querendo me enrolar, é? Eu não quero ter que ir até sua casa te levar pela orelha que nem um menino...
-Quero ver você me achar: mudei de endereço há oito semanas...huahuahua...
-Talvez não achasse mesmo se a nova lista telefônica não tivesse chegado essa semana.
-Eu pedi pra tirarem meu endereço! Merda de companhia telefônica...

5.
Dim-dom! Abre a porta.
-Ah, é você e sua fantasia ridícula de novo?
-Mas que implicância com a minha roupa... Já tá pronto?
-Não, você chegou rápido demais, nem deu tempo pra preparar minha fuga daqui...
-Você sabe que um dos meus superpoderes é a supervelocidade...
Faz cara de deboche enquanto põe suas luvas:
-Blá, blá, blá...
-Olha, você não vai querer brigar comigo, né? Dormi muito mal hoje, acho que preciso trocar o meu colchão.
-E eu, então? Fiquei cavando aquele buraco... minhas costas estão me matando... - volta do quarto já com as botas calçadas e com um cartão na mão - Vou te dar o cartão da loja que eu comprei a minha cama. Diz que fui eu que te mandei. O gerente é meu amigo e vai te dar um desconto.
-Muito obrigado. Mas não pense que isso vai te livrar da cadeia.
-Imagina. Pra que servem os amigos?
-Amigos... sei...
-Bom, vamos embora logo antes que tapem todo o buraco que eu fiz de manhã.
E fecha a porta.

Capítulo Vinte e Nove - História Qualquer

Ela agarrou a mão dele e o levou para dançar. Ele dançava tão bem quanto um pato desajeitado. A irmã dela ficou de birra num canto. Ela só fazia isso pra provocar, sabia que a irmã gostava dele, mas não tinha coragem de tirá-lo pra dançar.
Além do mais a irmã mais velha sempre foi a mais bonita, mas tinha inveja da inteligência e talento da caçula. E a caçula tinha raiva da beleza-conquistadora-de-namorados da primogênita.
E fez pior: beijou ele, que ficou sem entender nada, mas tinha medo de perguntar.
E durante quase um mês namoraram. Passeavam todo final de semana, sempre com a irmã junto - exigência da mãe superprotetora. A pequena odiava. Ele (que começava a perceber os olhares diferentes da caçula em sua direção) se sentia constrangido e a mais velha achava graça naquele triângulo amoroso.
Depois de três semanas e meia, mais ou menos, a mãe se mudou com as filhas para outra cidade, distante uns trezentos quilômetros dali. Os dois namorados prometeram se corresponder, o que não cumpriram. A outra ponta do triângulo chorou.
...

Alguns anos mais tarde, por ocasião de uma fatalidade, os três se encontraram de novo. Os olhos dele brilharam. Os olhos dele ainda eram os mesmos olhos de menino. Elas, no entanto, estavam as duas mais experientes, com jeito de gente adulta.
-Olá.
-Oi.
-Podemos conversar a sós?
O coração da irmã já havia cicatrizado, não se importava mais com os dois. Tinha um namorado, até.
-Eu sabia que você voltaria um dia...
-Sim, mas é por pouco tempo.
-Como assim? - sorriu sem graça
-Olha, eu estou casada, sabe? Não posso mais ficar me relacionando assim com homens, principalmente antigos namorados.
-Mas eu esperei tanto tempo, nunca amei outra garota, achei que você também...
A irmã gritava que precisavam ir.
-Querido, entenda uma coisa: aquilo tudo foi só por causa do sexo.

Mas eles nunca fizeram sexo.

Capítulo Vinte e Oito - Edmar

Uns dias atrás cruzei na rua um garoto, de uns quinze ou dezesseis anos, que ficou me olhando até chegar perto de mim e perguntar:
-Você é irmão do Edmar?
Eu não era irmão de nenhum Edmar.
-Não.
-Ah...
E ele continuou o seu caminho.
Agora, fico imaginando o que teria acontecido se eu dissesse que era (ou fosse mesmo) o irmão do tal Edmar. Provavelmente ele só ia dizer pro Edmar que encontrou o seu irmão. Mas aí não ia ter graça. Por isso bolei umas hipóteses mais interessantes:

Hipótese nº 1
-Você é irmão do Edmar?
-Sou
-Ah, então foi você que andou dando em cima da minha namorada, seu filho da puta?!
E quando eu vejo tem três amigos dele em volta de mim distribuindo socos e chutes...

Hipótese nº 2
-Você é irmão do Edmar?
-Sou
-Trouxe o bagulho?
-O bagulho?
-É, porra, trouxe ou num trouxe? É bom ter trazido, se não tu e o Edmar vão se ver comigo!

Hipótese nº 3
-Você é irmão do Edmar?
-Sou, sim, por quê?
-Bem que o Edmar falou que você era um gato! Pena que sua família não entenda sua opção, né?
E se atira nos meus braços tentando me beijar...

Hipótese nº 4
-Você é irmão do Edmar?
-Eu mesmo.
-Pô, Edmilson (deve ser esse o nome do irmão do Edmar), tá lembrado de mim, não?
-Claro que eu lembro...
-Não senti firmeza. Sou eu, o Ricardo, que estudou com o teu irmão.
-Ah, Ricardo...
-Pôxa, Edmilson, tu fica dois anos sem me ver e já não lembra? Eu vivia na tua casa... Grande amigo você, hein? Diz pro teu irmão que eu nunca mais apareço lá!
-Peraí...

quinta-feira, 19 de janeiro de 2006

Capí­tulo Vinte e Sete - Carpe Diem

(leia rápido, a vida é curta)


Sorria pra mamãe. Diz papai. Dá um beijinho na titia. Come tudo. Não gospe fora. Agora engole. Não ande descalço. Não brinque na lama. Não tenha medo. Não brigue com o seu irmãozinho. Divida com a sua irmãzinha. Seja uma boa criança. Se comporte. Não grite! Não chore. Não corra. Escove os dentes. Lave atrás da orelha. Reze pro Papai-do-céu. Durma com os anjos. Acorde. Leve uma blusa. E não esqueça o dinheiro do lanche. Não fale com estranhos. Vá para o seu quarto. E só saia quando eu mandar. Me desculpe. Peça desculpas para o seu amigo. Tome todo o remédio. Agradeça a vovó. Estude mais. Arrume suas coisas. Faça amigos. Beije aquela garota. Assista esse filme. Compre Batom. Compre Batom. Just do it. Leia mais. Ajude as pessoas. Escolha uma profissão. Faça mais exercícios. Tenha calma. Não fique assim. Termine logo. Me entregue o seu trabalho até amanhã. Pára de encher o saco! Escuta isso aqui. Cala a boca. Fale mais alto. Não fume. Não use drogas. Beba um pouquinho. Responda a minha pergunta. Preste atenção. Entre no ritmo. Obedeça. Espere um pouquinho. Me beija. Diz que me ama. Diz que sim. Diga não. Não diga que não sabia. Termine até terça. Me entregue aquele relatório. Fale com o gerente. Me busque um café. Limpe sua mesa. Faça o jantar. Plante uma árvore, escreva um livro e tenha um filho. Cuide dele. Dá a mamadeira. Troque a fralda. Vá falar com o seu filho. Converse com a sua mulher. Abrace os seus amigos. Não seja tão chato. Vá ao médico. Relaxe. Não faça força, coma mais verduras e frutas, não fique irritado. Não se preocupe. Não tenha medo.

Viva bem. Carpe diem. Viva bem. Viva bem.

Descanse em paz.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2006

Capí­tulo Vinte e Seis - Por quê?

Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? 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Capítulo Vinte e Cinco - Possíveis nomes para uma banda de rock (ou não)


  • Koalas Assassinos

  • Devotos de São Longuinho

  • The Mazzaropi Guitar Band

  • Os Discípulos de Nelson Gonçalves

  • O projeto Sem Nome (hehe...)

  • Ted Furacão e Os Pigmeus do Zimbábue

  • Os Desmafagafizadores de Mafagafinhos

  • A Fantástica Banda do Estranho Dr. Merkwürdi

quarta-feira, 11 de janeiro de 2006

Capítulo Vinte e Quatro - Da vez que Clarissa ligou para Roberto

-Alô?
-Oi, é a Clarissa.
-Ah, que bom que você ligou!
-Por que? Aconteceu alguma coisa?
-Não, só achei legal poder falar com você.
-Ah...
-Enfiim. Tudo bem?
-Tudo, tudo. E você?
-Tudo também...
-Legal...
-Você ficou até o final da festa aquele dia?
-Fiquei, pelo menos foi o que me disseram, eu não lembro de nada...
E os dois riram.
-Que coisa, hein? Mas pelo menos de mim você lembra, né? - Roberto sempre foi um cara inseguro.
-Lembro. Eu não estava bêbada a festa inteira, só no final. Sabe como é, fim de festa é sempre um porre... - e deu uma sonora gargalhada, ele não achou muita graça mas riu também...
-Eu tava pensando se a gente podia se encontrar um dia desses...
-Bom, eu ando meio ocupada, mas posso dar um jeito..
-Tudo bem, desde que não seja em outra festa da Lu... - dessa vez ele riu, mas ela não.
-Por que? A festa tava chata?
-Não, que isso. É por que outra festa da Lu só ano que vem...
-Ah, claro..
-Bom, agora eu preciso ir..
-Tudo bem.
-Outro dia eu te ligo, tá?
-Tá legal.
-click!
...

Dias depois Roberto conheceu a mulher com quem se casaria dois anos mais tarde. Clarissa, de tão ocupada, não se lembrou de ligar pra ele.
E no outro ano nenhum dos dois foi à festa da Lu.

Capítulo Vinte e Três - Da terceira vez que Roberto ligou pra Clarissa

-tuuuuu...........tuuuuu............tuuuuu............tuuuuu............tuuuuu.......
-Oi, aqui é a Clarissa, no momento eu não estou, - Roberto odiava secretárias eletrônicas, mas não tinha outro jeito... - deixe o seu recadinho pra mim, tá? - que espécie de mensagem é essa? Parece coisa de adolescente boba...
-Biiip!
-É... - por onde começar? - aqui é o Roberto, lembra? Da festa da Lu, sábado passado, você me deu o telefone. Então, resolvi te ligar, mas não consegui falar com você, então te deixo esse recado aqui - como ele parecia um idiota falando... - me liga, tá? Er.. beijo.
-click!

Capítulo Vinte e Dois - Da segunda vez que Roberto ligou pra Clarissa

-tu tu tu tu tu tu tu tu tu tu tu tu tu
click!

Capítulo Vinte e Um - Da primeira vez que Roberto ligou para Clarissa

-tuuuuu...........tuuuuu............tuuuuu............tuuuuu............tuuuuu.......
-Oi, aqui é a Clarissa, no momento eu não estou, deixe...
-click!

Capítulo Vinte - Quem tem medo do Nicolau?

Dois sujeitos, desses não dos mais fortes, mas que à luz de um beco sujo são de dar medo em qualquer um. Menos no Nicolau.
Pra quem não sabe, o Nicolau é um suicida em potencial. Não que ele seja depressivo ou tenha feito uma apresentação dessas em cima de um prédio, mas ele não tinha medo nenhum de morrer e não se importava em se meter em situações perigosas.
Pois bem, estavam lá os dois sujeitos já mencionados no, também já mencionado, beco escuro quando deram de cara com o Nicolau:
-Ô, irmão, não tem um qualquer aí pra ajudar a gente?
O Nicolau, muito simpático como sempre, deu um tapinha nas costas do sujeito e lhe falou:
-Fica pra próxima, amigo - e saiu andando.
O sujeito o agarrou pelo braço e ameaçou:
-É melhor tu passar logo o que tem se não quer confusão...
-Ah, já entendi!
-Entendeu o quê?
-Nada, não... -e deu uma risada disfarçadamente, o que irritou muito o meliante.
-Esse cara de zoeira com nós, Zé!
-Calma, rapaz, pega logo o que tu quer e vâmo dar o fora antes que suje pra nós!
E o Nicolau calmo como um dia de verão numa cidade do interior:
-Eu não sei quanto à vocês, mas eu quero chegar logo em casa, então pega logo o que tem que pegar - e abriu os braços.
O outro desconfiou:
-Ih, qualé? Tá dando uma de fácil, agora? Aí tem coisa...
-Tá com medo do quê? Eu não tô armado, não, pode ver...
Realmente o Nicolau não tinha cara de quem carrega uma arma, sequer tinha cara de quem batia em alguém. Na verdade ele estranho demais pra ter cara de qualquer coisa.
O assaltante revistou os bolsos e a carteira do Nicolau:
-Mas tu não tem quase nada!
-É que tua mãe levou tudo o que eu tinha, ontem à noite! - e desatou a rir...

O enterro do Nicolau não foi triste, não. Todo mundo que conhecia o Nicolau sabia como ele era. Tudo bem que ninguém nunca imaginou que ele seria capaz de tal façanha, que, pra falar a verdade, eu nem sei como souberam, já que os dois mal-encarados fugiram logo após os disparos.
Mas o enterro do Nicolau não pode ser triste mesmo por um pequeno detalhe: o defunto exibia no rosto um sorriso insano de quem perde a vida, mas não perde a piada...

Capítulo Dezenove - Gente Inteligente

Num bar, sexta à noite, a amiga reclama com a outra que está cansada de homens burros e idiotas. A amiga então diz que conhece um cara perfeito pra ela.
No sábado a amiga chega com o tal cara.
Após as devidas apresentações:
-Como você é bonita.
-Que isso, são seus olhos.
-Na verdade isso é fruto de um padrão estético preconceituoso pautado por qualidades características de pequenos e privilegiados grupos, disseminado pela sociedade, mas muito criticado. Além do mais meus olhos só transmitem informações luminosas para o meu cérebro que as decodificam e... ei, peraí, onde você vai? Eu ainda nem falei sobre a solidão do ser humano nas grandes cidades e...

terça-feira, 3 de janeiro de 2006

Capí­tulo Dezoito - Bilhetes

"Mãe,
eu queria te dizer que a geladeira tá vazia, o gato tá estranho (acho que ele tá doente), eu preciso de dinheiro pra comprar umas roupas e o pai ligou dizendo que esse mês a pensão vai atrasar, já que você nunca tá em casa eu tô deixando esse bilhete mesmo que agora eu tenho que sair
beijos, te amo"

"Vítor Augusto, meu filho, se a geladeira tá vazia e você não tem dinheiro a culpa é tua, que não arranja emprego e fica em casa o dia inteiro comendo que nem um porco e se o gato tá estranho é por que ele não tem comida, ontem dei o resto daquela ração com sabor de rato (aliás, onde que você achou ração com sabor de rato? eu nunca tinha visto...)
Agora, pára de dizer que me ama! Se eu te pago um psicanalista é pra ele acabar com esse teu complexo de Édipo, porra! Ai, desculpa, não queria escrever porra, eu queria escrever pôxa. Xi, escrevi de novo... Ah, deixa pra lá. Se o inútil do teu pai ligar, diz pra ele que se a pensão atrasar mais um dia eu processo ele e tiro cada centavo que ele ainda tem. Ora, como ele acha que eu pago os cursos da tua irmã?"

"Mãe,
Você sabe muito bem que tá dificil arranjar emprego pra alguém sem experiência como eu. E que raio de ração sabor rato é essa? A ração do gato tá naquele pote menor em cima da geladeira e é sabor peixe, eu hein...
E pára de uma vez por todas de dizer que eu tenho complexo de Édipo! O doutor já disse que eu não tenho nada disso, que é coisa da tua cabeça. Disse até que era pra marcar uma consulta pra você. O pai ainda não ligou. Beijo"

"Vítor Augusto, seu desocupado, eu sei que é dificil arranjar emprego pra alguém sem experiência, mas alguém com 32 anos de idade sem experiência, não dá, né?
E a ração do gato era aquela que tava na despensa, uma caixinha com um desenho de rato, nem vi qual era a marca. Oras, leva o gato no veterinário e pára de me encher.
Depois liga pro teu pai e diz que a tua irmã quer o dinheiro logo. Ela disse que precisa muito, tava até chorando por que a mensalidade tava atrasada, vê se pode! Quer dizer, eu não vi ela chorando, mas devia estar, por que os olhos dela estavam bem vermelhos.
E aquele idiota do Dr. Estevão não sabe de nada. Amanhã mesmo eu te troco de psicanalista."

"Mãe, você deu veneno de rato pro Aristóteles! Ai, caramba, tô indo agora pro veterinário"

"Mãe, o pai já me mandou meu dinheiro? O pessoal tá dizendo que vai me matar, quer dizer, me expulsar do curso"

"Vítor Augusto, como é que eu ia saber que aquilo era veneno de rato? E Ana Carolina, o seu pai tá fugindo de mim que nem o diabo foge da cruz, não encontro ele em lugar nenhum. A propósito, alguém sabe onde tá meu colar de ouro? Eu vou à uma festa hoje à noite e não acho ele de jeito nenhum"

"Mãe, o gato morreu. Custava ter lido o que tava escrito na caixinha? E eu não vou mais à psicanalista nenhum! E pergunta pra Ana quando é que eles vão apresentar alguma coisa naquele curso de teatro dela, que eu tô doido pra ver... hehehe..."

"Vítor, seu idiota, você sabe muito bem que eu tenho medo do Paulão palco. E mãe, eu preciso do dinheiro até às oito, se não..."

"Minha filha, onde é que eu vou arranjar quinhetos reais até às oito? Eu vou lá reclamar, eles cobram os olhos da cara e ainda não aceitam atraso? Se ao menos seu irmão tivesse um emprego decente..."

"O quê?! Se eu tivesse um emprego eu nunca ia dar dinheiro pra essa menina comprar, quer dizer, pagar esse "curso". Aliás, o pai ligou disse que não vai dar dinheiro nenhum pra filha dele se envolver com essas coisas. Foi o que ele disse."

"Mas o seu pai é um ignorante mesmo, ele pensa que os atores são uns indecentes, é? Pois ele vai ver só uma coisa!"

"Mãe, ligaram do IML, disseram que era pra ir lá. Urgente"

"Mãe, o seu advogado ligou, diz que já tá preparando a papelada pro processo do papai. E ligou a secretária do novo psicanalista que você me arranjou. Eu não vou! Também já ligaram do cemitério, disseram que o local tá pronto para o velório."

"Vítor, acredita que na delegacia disseram que não foi um assaltante que matou tua irmã, que foi um traficante, um tal de Paulão? Meu Deus, o que esses safados queriam com a minha filhinha?! Desculpa as lágrimas no bilhete. Te vejo no velório."

Capítulo Dezessete - Maristela

Maristela era a garota mais linda do mundo. Pelo menos até eu ficar mais velho e conhecer outros mundos, outras mulheres... Morávamos num pequeno paraíso longe da civilização e dos seus pequenos prazeres tecnológicos, que hoje me são essenciais. Passeávamos, eu e Maristela, por aí, sempre à procura de novos lugares para fugirmos da vista de nossos pais.
Mas nosso local preferido era a Pedra do Grito (cujo nome muito se especulava a respeito, mas ninguém sabia nada de concreto. Deixemos isso de lado, no entanto). De lá tinha-se a vista mais linda da pequena vila e do mar. Ah, o mar... Verde e cristalino como há muito deixou de ser... Passávamos as tardes, vagarosas tardes, no alto daquela da pedra. Conversávamos, fazíamos planos para o futuro, admirávamos a vista e a companhia um do outro. Maristela foi minha primeira paixão, mas só hoje me dou conta disso. Se me dissessem à época que eu era apaixonado por ela (e devem ter dito, mas minha memória me trai), eu teria ficado nervoso, teria recusado a idéia, como é comum àqueles que ainda não se acostumaram com os hormônios da puberdade.
Naquele lugarejo o tempo parecia não passar... doce ilusão. O tempo passou, sim, e quando notei era tarde.
Um dia notei que algo incomodava Maristela, e ela enrolou pra falar: iriam se mudar, ela e a família, pra cidade grande. O pai recebera uma boa proposta, e aquela história toda de sempre, de toda história de amor.
Não quero te chatear, você que ouve minha história com tanta atenção, com detalhes mais melodramáticos. E também não quero lembrar detalhes de algo que ainda mexe no fundo... O fato é que ela se foi. E eu fiquei.
E os turistas chegaram.
Como convém a todo lugar ermo, praticamente intocado pela mão destrutiva do homem, alguém o descobriu. E achou lindo. E contou a outro turista, que também veio... Bom, não é preciso dizer muito mais. Em pouco tempo o lugar virou um ponto turístico dos mais prósperos.
E praticamente todo mundo da vila de pescadores, especialmente os mais novos, viram nisso uma forma lucrativa de ganhar a vida. Inclusive eu. Em pouco tempo adquiri um patrimônio considerável. E uma boa esposa, que veio da cidade grande pra morar comigo. Diga-se de passagem, muito mais bonita que Maristela, ao menos para os padrões comuns daqueles que ignoram os sentimentos individuais.
Nos mudamos pra cidade e deixei os negócios nas mãos de pessoas de minha confiança. Esse lugar enorme, impessoal, onde vejo o rosto de Maristela em cada garota na saída das escolas, dessas garotas que ainda acham o mundo lindo. Dessas que não sabem que a Maristela deve estar hoje casada com um cara rico e sem cérebro, mas que ainda pensa em mim toda vez que seu marido chega em casa tarde da noite. Que não sabem como é difícil terminar bem uma história de amor, se é que um dia acabam.
Se é que um dia acabam...



N.A.: 1-O texto acabou ficando muito mais sério do que eu esperava. Não sei por que...
2-Eu ia dar mais detalhes sobre a Maristela, mas cada um a imagine como quiser.
3-Isso vale também para os outros detalhes e aspectos não-explorados no texto.
4-Era só isso que eu queria falar.

Capítulo Dezesseis - Momento

Todo humorista que se preze deve saber o que dizer na hora certa, por que de outro modo a piada não funciona. Se disser antes da hora, ninguém entende nada. Se disser depois, ninguém acha graça. Um bobo da corte que não soubesse o momento, que não tivesse o timing, poderia ser morto no dia seguinte, sem uma segunda chance e de uma forma nada engraçada...
Infelizmente, esse não é um problema só daqueles que querem fazer rir. Na verdade é um perigo pra quase todo mundo. Pense em quantas brigas não teriam sido evitadas se a palavra perfeita surgisse naquele momento exato, na linha que divide a felicidade dos vasos quebrados contra a parede.
Ou em entrevistas de emprego, que você sempre sai se lamentando por ter abrido o bico quando te perguntaram o porquê de ter sido demitido do seu último emprego, ainda que você tenha dito que não bebe mais em servicço e muito menos dança pelado em frente às câmeras de segurança na véspera do feriadão. (Ah, bons tempos aqueles...)
Eu mesmo já perdi minha noção de timing há muito tempo. Não acerto uma! É incrível a minha capacidade de dizer a coisa errada na hora certa, a coisa certa na hora errada ou, o mais comum, a coisa errada na pior hora possível. Eu poderia dar mil exemplos, mas pergunte aos conhecidos que eles sabem os detalhes, eu não. Não gosto de ficar me torturando com o que poderia ter sido...
Portanto se um dia você vir alguém em apuros, se você sentir que o momento crucial está chegando e esse alguém não vai dizer o que deve! Não pense duas vezes (isso poderia ser erro), dê um jeito de avisar, nem que você tenha que gritar:
-Agora!
Acredite, carreiras, relacionamentos, até vidas, serão salvas. E as pessoas, eternamente gratas, não deixaram que nada de mal te aconteça e nem que você perca a sua oportunidade de dizer a coisa certa na hora certa. Ou de fazer um bom final para o seu texto. O que for melhor.