sexta-feira, 15 de setembro de 2006

Capítulo Sessenta e Quatro - Histórias desinteressantes

-E aí eu derramei molho na barra da minha saia e nem vi.
-E você saiu assim?
-Pois é. E um cara lindo veio falar comigo.
-E ele viu a mancha!
-Não.
-Que bom, hein. Alguém viu?
-Não. Quando eu cheguei em casa, fui correndo trocar de roupa e tirar aquela mancha.
-E daí?


-Minha mulher disse que tava ouvindo uns barulhos estranhos na sala e mandou eu ir ver o que era. Peguei uma vassoura que tava no corredor e fui lá.
-E tinha um ladrão?
-Não. Daí eu pensei: deve ser um rato. Dos grandes.
-E tinha um rato?
-Não, não tinha nada.
-Nada?
-Nada. Minha mulher imaginou.
-Ah.


-Você não sabe da melhor: outro dia eu encontrei o Cid Moreira na rua!
-E falou com ele?
-Eu gritei: Cid! Cid!
-E ele veio falar com você?
-Não, nem me ouviu.
-E não correu atrás dele?
-Eu não. Correr atrás do Cid Moreira? Por favor... 

Capítulo Sessenta e Três - Pedro Hélio, a barata da caixa de fósforos

Pedro Hélio era uma barata macho que vivia numa caixa de fósforos. Apesar de ser uma barata de respeito, cumpridora da lei e da ordem, era meio cabeça-quente. Quase sempre se metia em alguma briga e quase sempre se arrependia depois. Também pudera, era motivo de chacota entre os seus amigos só por que, veja você, morava numa caixa de fósforos!
-Cuidado pra sua casa não pegar fogo! - dizia a barata Martins, que morava dentro do ralo do banheiro.
-O médico disse que o Pedro Hélio precisava de vitaminas, mas ele não quis destruir a casa dele! - brincava a barata Lopes, que era hipocondríaca.
-É. - concordava sempre a barata Figueira, que não era uma barata de opinião.

Mas Pedro Hélio não tinha outra escolha. Além do mais, já tinha se acostumado a viver ali. A sua casa de caixa de fósforos era toda decorada com cores quentes e num canto havia uma cama feita de palitos. Ele era uma barata feliz até. Mas sentia falta de alguém para aquecer as noites frias.

Paula Helena era uma garota quente. Digo, uma barata quente. Uma barata fêmea de fazer qualquer um perder a cabeça. Pedro Hélio a conheceu num clube noturno, o "Fiat Lux Jass Club". Ele costumava tocar saxofone com a sua banda aos domingos. Paula Helena curtiu o som e foi falar com Pedro Hélio depois do show.
-Tens fogo? - perguntou ela com um cigarro na mão.
Combinaram de passear no parque numa quarta-feira à tarde. Era um dia ensolarado de piquenique. Disfarçado de formiga-operária-padrão, Pedro Hélio roubou um quindim de uma cesta alheia. Paula Helena se apaixonou. Marcaram suas inicias dentro de um coração no tronco de um pau-brasil.

"Você incendeia meu coração", escrevia ele nas poesias de amor que fazia para ela. Era verão. Paula Helena se mudou para a casa de caixa de fósforos. E tiveram filhos e a casa ficou pequena. Pedro Hélio, agora pai de família, arranjou um emprego no corpo de bombeiros e eles puderam se mudar para uma caixa de sapatos no canto do quarto onde o sol bate todas as manhãs e ninguém mais desrespeita o Pedro Hélio.

Dizem à boca-pequena que a paixão dos dois já esfriou. Mas isso eu não sei se é verdade. 

Capítulo Sessenta e Dois - Duas ou três brigas de um casal no início do relacionamento

-Mas por que você não quer conhecer a minha vó?
-Não é que eu não queira, é que eu já tinha prometido à Renatinha ir almoçar com ela hoje.
-Mas vocês se vêem todos os dias, podia ficar um dia longe dela...
-Pôxa, ela acabou de terminar o namoro, coitada! Ela não quer ficar sozinha...
-Se ela precisasse tanto assim de companhia, não tinha terminado o namoro...
-Mas ele era um canalha!
-Bom, ela podia tentar achar um outro cara. Podia ser hoje, que tal?
-Num domingo à tarde?
-Ela podia, sei lá, ir num parque, levar o cachorro pra passear. Pode dar certo...
-Mas ela nem tem cachorro!
-Eu empresto o Brutus.
-Aquele monstro vai é espantar os pretendentes...
-Pro seu governo, o Brutus nunca atacou ninguém, tá?
-Não adianta, eu não vou deixar de almoçar com ela. Domingo que vem a gente vai almoçar com a sua vó.
-Mas eu já avisei a vovó que ia te apresentar a ela. Coitada, vai ficar tão desapontada...
-Pois você devia ter me consultado antes.
-Consultar? Eu só disse que ia almoçar com a minha vó, não comprei uma casa no nosso nome!
-Pois eu não vou e pronto! Tá rindo do quê?
-Nada não...
-Fala, vai! Tá rindo do quê?
-É que essa é a nossa primeira briga...
-E que tem de engraçado nisso?
-Nada, só achei bonitinho...
-Bonitinho, é?
-É, e você fica linda quando fica nervosa... Olha aí, tá rindo também...
-Você é um bobo, sabia?
(beijos, beijos, beijos)
-Sabe de uma coisa?
-O quê?
-E se a gente ficasse aqui?
-Nada de almoço?
-Nem de avós, nem de amigas...
(mais beijos...)

***

-Vamos logo ou a gente vai se atrasar!
-Só estou terminando de me maquiar!
-Maquiar? A gente só vai no cinema!
-E só por isso eu preciso sair feia?
-Feia? Você é linda de qualquer jeito, com maquiagem ou sem.
-Sei, tá dizendo isso só pra eu ir logo...
-É verdade. Você é um dragão e eu só tô com você pela fortuna da sua família.
-Que fortuna?
-Eu tava só brincando... agora vê se termina logo de se arrumar.
-Já tô terminando. E se a gente chegar um pouquinho atrasados, qual o problema? Eles sempre passam aqueles trailers intermináveis antes do filme...
-É, mas daí a gente não vai conseguir um bom lugar...
-Um bom lugar pra que? A gente vai no cinema e não vê o filme mesmo...
-E você acha ruim?
-Não é que eu ache ruim... mas se for pra ficar namorando, a gente podia ficar em casa mesmo...
-Mas no cinema é mais gostoso... além do mais o filme que a gente vai ver hoje parece ser bom, a gente pode até assistir...
-Sei não... da última vez que você falou que o filme parecia bom...
-Ah, vai... até que era bom...
-Você dormiu no meio do filme!
-Dormi nada! E você já terminou de se maquiar?
-Já, agora só falta eu escolher um sapato.
-Ai, não! A gente não vai sair daqui nunca!
-Pelo menos eu não saio toda desarrumada que nem você.
-Eu? Mas eu tô arrumado!
-Ah, é? E essa camisa toda amassada?
-Ela tava passada, mas você demora tanto que eu me sentei e aí ela amassou...
-E esse tênis velho? Qual a desculpa?
-Eu gosto dele, tá? Mas que implicância com as minhas roupas!
-Você que começou a implicar comigo! Tá rindo do que de novo? Toda a vez que a gemte briga você começa a dar risada?
-E que essa é a nossa segunda briga...
-É nada...
-Claro que é!
-E aquela no supermercado por causa do pão integral?
-Aquilo nem foi uma briga direito...
-Claro que foi! Você ficou uma semana reclamando ainda por causa do tal do pão!
-Também, era ruim igual não sei o quê! Nem você gostou...
-É, mas um dia você vai me agradecer por estar bem de saúde.
-Se for pra continuar comendo essas coisas horríveis, prefiro morrer logo...
-Aí, tá vendo? Continua brigando por causa do pão!
-E você continua linda quando fica nervosa...
-Ah, nem vem com esse papo pra cima de mim, não!
-Ah, é assim? Eu te elogio e você acha ruim? Quer saber, até perdi a vontade ir ao cinema! O filme já deve ter começado mesmo...
-Então não vá, oras! Eu vou sozinha!
-Por mim! Não tô nem aí! Ei, isso dói!
-Ai, me solta!
(sexo selvagem...) 

Capítulo Sessenta e Um - Ela

Eu já estava no segundo copo, mesmo bebendo devagar. Dezessete minutos atrasada. Será que ela viria mesmo? Por que haveria de se importar com alguém como eu?

-Aparecer na tv não é nada - ela me disse entre uma baforada e outra do cigarro de menta que ela fumava - você não é melhor ou pior do que ninguém só por que apareceu na tv. A fama só serve pra acabar com a sua privacidade. E o dinheiro... bem, o dinheiro é bastante útil enquanto não desaparece da sua mão.

Eu olhava entediado para as pedras de gelo no fundo do meu copo.

Quase não acreditei quando ela entrou. Ela veio mesmo. Corri em sua direção e logo me apresentei, dizendo que estava muito feliz por ela ter aceitado o meu convite. Ela disse que dois anos atrás eu sequer conseguiria conversar com ela, mas hoje em dia os antigos fãs mal se lembram dela, imagine convidá-la para sair. Eu disse que uns amigos nem acreditaram que eu ia sair com uma estrela da televisão e que eles lembravam bem dela. Ela apenas sorriu.

-Você é quem eu estou pensando que é?
-Se você está pensando que eu sou alguém que lê mentes, então está errado.
Ela sorriu. Eu sorri, muito mais pela felicidade de falar com ela do que pelo gracejo.
-É claro que você é quem eu estou pensando que você é! Sou o seu maior fã!
-Acho que hoje em dia você é o meu único fã.

Suas pernas eram lisas como nos meus sonhos. Seus seios, ainda mais lindos. Ela tinha um gosto que eu jamais imaginara. Como nunca imaginei que gosto ela tinha? Seu perfume era doce e os fios de cabelo eram grossos e bem cuidados. Seus gemidos pareciam muito mais verdadeiros agora do que quando eu os ouvia nas cenas mais picantes da tv. Acho que eram gemidos de prazer.

-Você já sonhou muito com algo e quando realizou parecia que não era verdade?
-Já. E quando virou coisa do passado eu percebi que não aproveitei nada e que não ia ter outra chance de realizá-lo.
(Às vezes ela era extremamente dramática).
-Você se arrepende disso?
-Talvez. Mas se eu tivesse a sorte de ter aproveitado não teria aprendido nada.
-Você acha que eu devo aproveitar isso tudo que está acontecendo agora?
-Deve. Quando você morrer, tudo o que você aprendeu não vai valer de nada.

Da segunda vez que conversamos, tomei coragem de convidá-la para sair. Ir a um bar, um restaurante, enfim, algo mais sério. Ela aceitou com uma naturalidade que me chocou.

Depois que terminamos, ela acendeu mais um cigarro de menta. Pensei em perguntar se tinha sido bom, mas achei ridícula a idéia. Eu não sabia o que falar nem o que fazer. Ela disse que era melhor que aquilo ficasse entre nós. Uma velha canção tocava no rádio. Desliguei o rádio.

Ela enrubesceu. Achei que você estivesse acostumada a ouvir elogios. Nunca me acostumei a ouvir elogios tão sinceros.

Entrei no apartamento tentando não demonstrar muita curiosidade. Era um apartamento comum. Cortinas comuns, mesa comum, cama comum. Eu era o único objeto estranho naquele lugar.

Fui até o banheiro, olhei o meu rosto no espelho e nada havia mudado. O mesmo rosto desbotado e apático de sempre. Voltei para o quarto e ela olhava para o teto.
-O que há de tão interessante aí em cima? - e me deitei ao lado dela pra poder olhar também.
-Nada, é por isso que eu gosto de olhar pra lá.
-Por isso que você se interessou por mim? Por que eu não tenho nada de interessante?
-Todo mundo tem algo de interessante. É por isso que eu olho para o teto de vez em quando, quando quero esquecer as pessoas.
-E por que você quer esquecer as pessoas agora?
-Eu queria mesmo é esquecer de mim mesma. Olha para o teto e vê se me esquece...

Eu estava triste no meu canto, vendo todas aquelas pessoas passando, quando reparei em uma mulher sentada numa mesa lá do outro lado. Era ela. 

Capítulo Sessenta - Antes de dormir

Sabe quando você se deita na cama à noite e fica pensando na vida? Lembrando daquela pessoa que faz seu coração disparar, pensando nas grandes questões da humanidade, como qual o sentido da vida, se o universo é mesmo infinito e qual o segredo da tostines, aquele momento em que você fica pensando no seu futuro, imaginando o que vai acontecer daqui a alguns anos ou fica se lamentando por que deu tudo errado no dia que passou. Sabe?

Tá. Agora pense na sua vó. É, aquela velhinha simpática (ou não), mãe da sua mãe ou mãe do seu pai. Quanto anos ela tem? 65? 73? 81? O que será que ela fica pensando quando vai se deitar para dormir? Durante o dia inteiro a gente pode se distrair, ver tv, jogar dominó, tirar meleca do nariz, mas a noite não dá pra não pensar em algo quando a gente vai dormir (menos minha irmã, que já começa a sonhar assim que fecha os olhos, uma coisa incrível). Será que sua vó ainda se preocupa em saber como tudo começou? Será que ela ainda fica pensando no seu vô? Ou será que ela fica só lembrando de como a vida era bem melhor antigamente, quando o joelho dela não doía tanto? Vocês não ficam muito curiosos quanto a isso? E o seu pai, já pensou no que ele pensa quando vai dormir? E o seu chefe, seu professor, o gari, o vendedor de cachorro quente? Você ainda pode ter uma idéia do que seus amigos, aqueles mais íntimos, pensam nessas horas, mas e o seu cachorro? Será que ele pensa? Hein? Hein?

Como? Suas duas avós já morreram? Sinto muito, deixa pra lá...
 

Capítulo Cinqüenta e Nove - Momento de sabedoria

"Se cada vez que eu ganhasse um centavo eu ganhasse outro centavo, eu teria o dobro de dinheiro que eu tenho agora."

 

Capítulo Cinqüenta e Oito - Canção do índio triste

Olha, chefe
Tem uma nuvem em cima de mim
Ela é pequena mas é cinza e carregada
E chove todo dia antes do pôr do sol

Olha, chefe
Essa nuvem que me segue por toda parte
Nunca molha ninguém além de mim
Quando chove todo dia antes do pôr do sol

Sabe, chefe
Não que eu ache ruim tomar banho de chuva
Ou ser atingido de vez em quando por um raio
Da chuva de todo dia antes do pôr do sol

Mas, chefe
Podia pelo menos ter um arco-íris bem bonito
Em cima de mim, depois que parasse
De chover todo dia antes do pôr do sol.

Aí sim, eu seria feliz...  

Capítulo Cinqüenta e Sete - A arte de esperar

Quarenta e quatro minutos adiantada. Tá certo que ela gosta de ficar pronta mais cedo, mas assim já é demais. O jeito é arranjar algo pra fazer enquanto espera. Nada na tv. Trinta e sete minutos. Nenhum livro interessante, nenhum cd que ela já não tenha cansado de escutar. Trinta e um minutos. Se o relógio fosse um desses antigos, podia pelo menos acompanhar o ponteiro dos segundos dando uma volta depois da outra, mas o rádio-relógio que fica do lado da cama apenas pisca irritantemente os dois pontos que ficam entre a hora e os minutos. Ela aproveita para arrumar o guarda-roupa e acaba se detendo com uma carta perdida dentro do bolso de uma jaqueta. Quatro minutos. Ainda bem. Quase na hora. Um minuto. Ele bem que podia chegar mais cedo.
Dois minutos de atraso. Ela olha pela fresta na cortina, verifica o relógio de novo, morde os lábios. Suspira. Cinco minutos. O tempo passa muito muito muito mais devagar quando a gente tá esperando alguém. Muito mais devagar. Muito. Oito minutos e nem sinal de vida daquele canalha. Sempre atrasa. Passos nervosos de um lado para o outro não conseguem afastar a tensão.
Quinze minutos já é demais! E o maldito nem pra telefonar avisando onde tá. A hora que ele chegar vai ver só uma coisa. Vinte e dois minutos, um copo d'água, ida ao banheiro, retocar o batom. Trinta e quatro minutos e ela arrancaria os cabelos se não tivesse ficado tanto tempo arrumando eles. Quarenta e sete minutos é o meu limite! Desisto, vou trocar de roupa. Uma hora e três minutos, dormiu no sofá, a tv ligada e nada de bom passando. Pelo menos já tava de pijama. Uma hora e cinquenta e cinco minutos. A campainha toca, ela acorda assustada, a primeira coisa que faz é olhar o relógio. Uma hora e cinquenta e cinco minutos de atraso. Foi a gota d'água. Dessa vez ele vai ter o que merece. Abre a porta, já está pronta pra dizer poucas e boas pra ele:
-Ué, não tá pronta ainda? - ele pergunta.