Capítulo Cinqüenta e Um - De como um sonho conseguiu viver uma vida plena e satisfatória.
Naquela manhã ele se deu conta de que era um sonho. Era um pensamento meio bobo pra se ter, mas ele teve certeza que era um sonho e ia sumir assim que o despertador tocasse.
-Mas despertador de quem? - perguntou a esposa enquanto servia o café.
-Não sei. Talvez o meu, talvez de outra pessoa que está sonhando que sou eu.
-E como você pode ter tanta certeza que é um sonho?
-Não tenho, só sei que sou. Como quando a gente tá sonhando e sabe que tá sonhando, nunca aconteceu com você?
-Já, mas nos meus sonhos assim eu podia fazer o que quisesse: voar, beijar uma mulher bonita, essas coisas. - observou o colega na firma.
-Talvez eu possa, ainda não tentei.
-O quê? Nem morta eu beijaria você! - esbravejou a secretária da empresa diante do pedido obsceno.
-Mas por que não?
-O senhor é casado! Além do mais não me atrai essa sua atitude...
-Ai!
-Desculpe, é que eu vi na tv que as pessoas beliscam as outras pra ver se elas não estão sonhando... - lembrou a filha, no carro durante o trajeto de volta à casa.
"Eu sou um sonho! Eu tenho que ser um sonho!" - ele pensou enquanto se equilibrava no alto do prédio. "Se eu voar, vou ter certeza que sou um sonho. Se não, eu vou saber que não sou um sonho e nem vale a pena viver."
Levantou os pés, sentiu o vento beijar-lhe suavemente as faces. Assim mesmo que ele pensou que o vento fazia: "beijava-lhe suavemente". Respirou fundo. Tomou ar e coragem e pulou. Por dois segundos teve certeza que duas pequenas asas, como aquelas de querubins, lhe cresciam nas costas e que estava de fato voando. Mas, ah, doce ilusão. De repente a brisa suave se transformou numa forte corrente de ar e ele principiou numa queda vertiginosa. Olhando pra baixo reparou que o chão tomava formas estranhas, como numa espiral psicodélica com cores berrantes se mesclando e uma voz lhe chamando "venha, venha"... Ahhhh!!!
-Que foi querido?
-Era um sonho. Eu era sonho, mesmo.
-Tudo bem querido, já passou. Volte a dormir agora, sim?
-Não posso. Talvez eu ainda seja um sonho...
-Querido, você está acordado agora, o sonho já passou.
-Você não entende, isso pode ser um outro sonho. O mesmo sonho talvez, que se repete infinitamente e do qual eu nunca vou acordar. Me belisca?
Ela o fez, e o beliscão se transformou numa dor imensa cheia de prazer e notou que a sua mulher, que se aproximava pra lhe beijar, era mais bonita do que de costume, era a mulher mais bonita do mundo e o beijava.