quinta-feira, 27 de abril de 2006

Capítulo Cinqüenta e Um - De como um sonho conseguiu viver uma vida plena e satisfatória.

Naquela manhã ele se deu conta de que era um sonho. Era um pensamento meio bobo pra se ter, mas ele teve certeza que era um sonho e ia sumir assim que o despertador tocasse.

-Mas despertador de quem? - perguntou a esposa enquanto servia o café.
-Não sei. Talvez o meu, talvez de outra pessoa que está sonhando que sou eu.
-E como você pode ter tanta certeza que é um sonho?
-Não tenho, só sei que sou. Como quando a gente tá sonhando e sabe que tá sonhando, nunca aconteceu com você?

-Já, mas nos meus sonhos assim eu podia fazer o que quisesse: voar, beijar uma mulher bonita, essas coisas. - observou o colega na firma.
-Talvez eu possa, ainda não tentei.

-O quê? Nem morta eu beijaria você! - esbravejou a secretária da empresa diante do pedido obsceno.
-Mas por que não?
-O senhor é casado! Além do mais não me atrai essa sua atitude...

-Ai!
-Desculpe, é que eu vi na tv que as pessoas beliscam as outras pra ver se elas não estão sonhando... - lembrou a filha, no carro durante o trajeto de volta à casa.

"Eu sou um sonho! Eu tenho que ser um sonho!" - ele pensou enquanto se equilibrava no alto do prédio. "Se eu voar, vou ter certeza que sou um sonho. Se não, eu vou saber que não sou um sonho e nem vale a pena viver."
Levantou os pés, sentiu o vento beijar-lhe suavemente as faces. Assim mesmo que ele pensou que o vento fazia: "beijava-lhe suavemente". Respirou fundo. Tomou ar e coragem e pulou. Por dois segundos teve certeza que duas pequenas asas, como aquelas de querubins, lhe cresciam nas costas e que estava de fato voando. Mas, ah, doce ilusão. De repente a brisa suave se transformou numa forte corrente de ar e ele principiou numa queda vertiginosa. Olhando pra baixo reparou que o chão tomava formas estranhas, como numa espiral psicodélica com cores berrantes se mesclando e uma voz lhe chamando "venha, venha"... Ahhhh!!!

-Que foi querido?
-Era um sonho. Eu era sonho, mesmo.
-Tudo bem querido, já passou. Volte a dormir agora, sim?
-Não posso. Talvez eu ainda seja um sonho...
-Querido, você está acordado agora, o sonho já passou.
-Você não entende, isso pode ser um outro sonho. O mesmo sonho talvez, que se repete infinitamente e do qual eu nunca vou acordar. Me belisca?
Ela o fez, e o beliscão se transformou numa dor imensa cheia de prazer e notou que a sua mulher, que se aproximava pra lhe beijar, era mais bonita do que de costume, era a mulher mais bonita do mundo e o beijava.

terça-feira, 11 de abril de 2006

Capítulo Cinqüenta - Outro Blá Blá Blá

-Eu queria te falar uma coisa, mas não sei como...
-Você quer terminar comigo?
-É, mas...
-Tudo bem.
-Como assim, tudo bem?
-Tudo bem, oras, você quer terminar comigo, vou fazer o quê?
-Você não gosta mais de mim, é? Nem se importa mais comigo!
-Quem não gosta mais aqui pelo visto é você, que quer terminar comigo...
-É, mas eu achei que você ainda gostasse de mim...
-E que diferença faz? A gente vai acabar o namoro mesmo...
-Eu pelo menos tive a coragem de vir aqui te falar!
-Ah, agora o malvado da história sou eu?!
-Malvado, não. É um covarde, isso sim!
-Ah, quer saber, me esquece, tá?
-É isso mesmo que eu vou fazer. E não me telefona mais!
-...
-...
-Amor, desculpa, é que eu ando muito stressada... Eu ainda gosto de você.
-Que isso, eu falei aquilo da boca pra fora, nunca deixei de gostar de você...

Capítulo Quarenta e Nove - Narração sem nenhum propósito

É preciso não pensar muito difícil agora. A simplicidade é uma meta impossível a ser alcançada como um cálice sagrado. Entra sorrateiro e furtivo no quarto e pega uma aspirina pra mim, só me dói agora e doer me expurga as culpas, mas hoje a dor me atrapalha pensar no que vamos fazer: fugir de um louco nunca foi tarefa das mais fáceis.
Eu sei que eu nunca devia ter metido você nessa mas também como eu ia saber? Com aqueles olhos carentes eu nunca imaginei que ele fosse um príncipe encantado às avessas. Tudo o que fiz na vida foi errado, eu nasci errada, aposto, com os pés primeiros. Meto os pés pelas mãos, me desgraço toda e nunca aprendo, sou muito inocente, sabia? Meu pai costumava me dizer isso: você é muito ingênua, acredita até no papai noel...
Fica quieto que eu preciso pensar num plano, um plano assim de ser inteligente, pra que ele nunca imagine o que eu vou fazer. Só espero que o telefone não toque. Que eu iria dizer pro outro lado da linha? Seria constrangedor, é tudo constrangedor. Você deve estar pensando: como ela é fatalista e um tanto quanto pessimista. Eu sei, eu também penso assim sobre mim. Mas que eu vou fazer?
Desenho mentalmente um mapa da fuga na parede. É preciso estar atenta aos menores detalhes. Por que eu falo tanto? Objetividade nunca foi meu forte. Não, não podemos mesmo ficar aqui o resto do dia. Sou orgulhosa demais pra ligar e pedir ajuda. Você diz isso por que ainda não entende que certas coisas não se resolvem tão fáceis.
Quando eu tinha sua idade, descobri aquelas manchas roxas no rosto da mamãe não eram de um tombo qualquer. Por isso não falo mais com aquele velho e nem o perdôo por ter deixado ela morrer. Ele a matou de desgosto pouco a pouco. Como assim por que eu estou falando isso? Não é óbvio? As situações são parecidíssimas. É claro que não é tão drástico assim meu caso, mas é parecido.
Me canso. Minha mente e meu corpo se cansam e me cansam. E cada vez me dói mais, aquela aspirina não serviu pra nada. Sou um soldado vencido na batalha com seu orgulho ferido. Liga pra ele e pede ajuda, vai, mas espera só um pouco pra ver se não acontece nada de diferente. E diz o quê? Oras, diz a verdade, por mais que isso me doa. E isso me dói.

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Ele atende o telefone e aquela voz conhecida lhe sussura:
-Pai, vem pra casa que o Rex tá querendo morder a mamãe.

Que tolice.

Capítulo Quarenta e Oito - Blá Blá Blá

-Já disse que te amo, hoje?
-Não, ainda não...
-Ah, tá...
-E então?
-Então o quê?
-Você não vai falar?
-Falar o quê?
-Que me ama, oras!
-Por quê?
-E precisa de um motivo?
-Não, mas parece que eu sou obrigado a falar agora.
-É que você acabou de perguntar se já tinha dito que me ama, hoje e eu achei que você ia dizer!
-Só por que eu perguntei?
-É lógico!
-É lógico só na sua cabeça...
-Você tá zoando comigo?
-Não, eu não estou é te entendendo...
-Quem não está entendendo sou eu. Você não me ama mais? É isso?
-Claro que te amo!
-Então por que não diz?
-Mas eu acabei de dizer!
-Claro, agora que eu briguei com você...
-Quer saber? Eu não agüento mais essa conversa!
-Nem eu!
-...
-...
-Amor, me desculpa?
-Que isso, eu é que...