domingo, 19 de fevereiro de 2006

Capítulo Trinta e Um - Costumes estranhos

Desde a escola ele tinha a irritante mania de ler em voz alta. Foi expulso pelo menos umas três vezes da biblioteca por causa disso. E duas vezes do cinema, antes de desistir de assistir a filmes legendados.
Mas fora isso levava uma vida normal. Se casou, teve uma filha e a levou pra passear no parque. Enquanto a filha brincava, ele lia o jornal. Enquanto ele lia, a filha ouvia. E quando a filha ouvia, ela não entendia nada. Dólar, gente morta, crise, gente reclamando da qualidade da tv e principalmente o tal do "governo" que tanto falavam.
-Pai, o que é governo?
-O quê?
-Que que é o governo que você falou?
-Ah, governo são as pessoas que o povo escolhe pra cuidar dele.
-Pai, o povo é criança?
-Não, o povo é o conjunto de todas as pessoas que moram num lugar.
-E o povo não sabe se cuidar sozinho?
-Sabe. Eu acho que sabe. Mas tem gente que se aproveita do povo.
-E daonde vem essa gente que se proveita do povo?
-Do povo mesmo.
-Ué? O povo se proveita do povo?
-É que tem gente que não entende que faz parte do povo...
-E o governo bate "ni" quem se proveita do povo?
-Não, mas põe na cadeia.

Cinco minutos depois a garota volta à perguntar?
-Pai, e se o governo se proveitar do povo?
-O quê?
-E se o governo se proveitar do povo? Quem põe o governo na cadeia?
-Teoricamente, o resto do governo.
-Que é "toricamente"?
-É teoricamente. É quando uma coisa devia ser de um jeito mas é de outro.
-Que nem o pudim que a mãe fez ontem?
-Mais ou menos...
-Então quem põe o governo na cadeia de verdade?
-De verdade? Ninguém...
-Então o governo pode se proveitar do povo sem ir pra cadeia? Mas não é pra isso que o governo existe?

Ele nunca mais leu em voz alta.