sexta-feira, 24 de fevereiro de 2006

Capítulo Quarenta e Três



...e o menino curioso
furou os dois olhos
só pra ver
o que tinha dentro...


Capítulo Quarenta e Dois - A balada do homem de nunca mais

Pulou por cima de uma andorinha, criou asas e fez que não viu. Sonhou que era gente normal e que ia trabalhar, acordou assustado com o próprio umbigo. Fez sentido quando tinha um gato na mesa, à milanesa, que beleza! Veja você, que coisa, eu rimo e não tenho vergonha... Já ele, colocou o casaco acústico e nem deu tchau. Parou antes que pudesse pensar pra onde ia. Viu que era melhor assim. Do outro lado da cidade, alguém igual a ele ia ao seu encontro, mas pro lado errado.
Pensou que era um ato surreal abrir um porta. Mas passou assim mesmo por cima do muro. Chegando em casa, tirou os chinelos e foi ouvir um sorvete de baunilha com tendências pós-modernas. Apagou o sol para poder relaxar e dançou. Enquanto dançava, sonhou que era gente normal e que ia trabalhar. Pensou que devia ver o padeiro por causa desse sonho freqüente.
Desceu ao teto onde estava o padeiro - que não sabia fazer pães de nuvem, que escândalo! - e por isso o padeiro entendeu tudo, disse que era o que não era e que devia fazer tudo ao contrário. Voltou para casa de costas e sussurrou coisas bonitas ao pé da cova.
Teve medo quando sonhou o sonho de novo, mas dessa vez sonhou quando dormia e por isso teve mais medo do que coragem. Arranjou um emprego de mentir para o rei e nunca mais sonhou. Puxou o final da história de baixo do travesseiro e deu na cara do leitor.

Capítulo Quarenta e Um - Doces Perigosos

Ele saiu correndo no meio da chuva tentando ordenar os pensamentos que se acumulavam, o deixando confuso. Esbarrou em duas ou três pessoas de guarda-chuva e quase chutou um cachorro magro que procurava uma sombra pra se abrigar da água que caía do céu.
Entrou numa loja que só não estava no breu total por conta da luz que entrava pela porta - por que ainda era dia e não havia energia elétrica no bairro. A moça do balcão nem deu pelo homem que entrou todo encharcado, conversava banalidades com uma cliente antiga. O homem passou os olhos pelas prateleiras e puxou a embalagem mais chamativa, nem olhou o preço, o que lhe interessava era... na verdade ele não sabia o que era, apenas pegou a embalagem que mais lhe atraiu e nem sequer sabia o porquê. O único pensamento racional que teve foi o de pensar que agia instintivamente como um animal. Levou a embalagem até o caixa e com as mãos ainda meio molhadas pegou uma nota de dentro da sua carteira. A moça do balcão - que também era a moça do caixa - colocou o produto dentro de uma sacola plástica e pegou a nota com um certo nojo do aspecto gosmento do papel meio úmido e devolveu o troco. Sem dizer uma palavra.
O homem enfiou a sacola debaixo da blusa para evitar que seu precioso produto e a sua preciosa embalagem não molhassem. Estava mais feliz que criança com brinquedo novo, se de fato não era uma.
Ao chegar em casa se enxugou rapidamente com a primeira toalha que encontrou e foi logo abrir o pacote. Abriu com cuidado a parte de cima e olhou para dentro da caixa colorida e lá dentro não era colorido, era escuro. Enfiou a mão e desconfiado puxou uma pequena bala. Olhou, viu a cor rosa bastante artificial, cheirou e um cheiro doce invadiu suas narinas. Enfiou na boca e saboreou tomando cuidado para não morder. Sentiu um gosto que há muito tempo não sentia, gosto da infância e dessas coisas bregas todas.
Estava curtindo o momento quando o telefone tocou. Pensou em reclamar mas a voz não lhe saiu: engoliu a bala sem querer e começou a engasgar. O telefone não parava de tocar e ninguém podia lhe ajudar - nem a desengasgar nem a atender ao telefone. Quis correr para a cozinha mas não estava enxergando nada, a tarde já ia embora e a luz ainda não tinha voltado no bairro. Tropeçou em algo no meio do caminho, tentou se apoiar na mesa e derrubou-a em cima de si mesmo, junto com a caixa colorida de balas coloridas. Doeu mas pelo menos a bala que estava entalada na sua garganta saiu com a batida. Então pensou que não devia ter saído de casa só por causa de uma vontade boba de comer doce. E pensou que aquela noite dormiria ali mesmo, sentindo o cheiro doce das balas doces e sonhando sonhos coloridos.

Capítulo Quarenta - Ciúmes

Ricardo era um mulherengo, Ana era ciumenta.
Ricardo casou com Ana depois de namorarem quatro anos.
Ana vivia suspeitando de Ricardo. E com razão, pois Ricardo a traía freqüentemente. E depois de algum tempo Ana convenceu Ricardo a se mudarem pra um bairro mais afastado, mais calmo, na esperança que ele também se acalmasse. Doce ilusão, no trabalho Ricardo continuou impossível. Ana sugeriu que ele passasse a trabalhar em casa, usando o computador e o telefone não precisava de mais nada. E Ricardo saía escondido à noite para os bares.
Ana arrastou Ricardo para uma cidadezinha que não tinha bares, boates ou qualquer tipo de vida noturna. E Ricardo se engraçou com as vizinhas.
Enquanto Ricardo dormia, Ana o levou para uma ilha deserta. E lá viveram felizes por muito tempo até Ricardo morrer.
Procurando um lugar pra enterrar o marido, Ana chorou como nunca ao chegar na praia do outro lado da ilha, o lado que nunca tinha ido.
Na areia, Ricardo havia esculpido dezenas de mulheres.

Capítulo Trinta e Nove - Um pouquinho de dignidade

Maria da Felicidade estava lavando a roupa quando ouve alguém bater palmas no portão da sua casa. Enxuga as mãos e vai atender quem quer que seja.
-Bom dia.
-Bom dia.
-Eu faço parte de uma associação que cuida de pessoas necessitadas. A senhora não teria alguma coisa pra nos ajudar? Roupas, alimentos?
-O senhor vai me desculpar, mas sabe como é... eu tô desempregada há três meses e as crianças dão uma despesa danada...
-Nem mesmo um calçado que não sirva mais nos seus filhos?
-Eu ficaria muito grata em ajudar, mas...
-Se não for muito incômodo, gostaria de pedir mais uma coisinha...
-Se for de graça...
-Bom, dinheiro não custa.... eu queria saber se a senhora não teria aí um pouquinho de dignidade?
-Tenho não, meu marido levou o pouco que eu tinha quando foi embora com aquela vagabunda...
-Esperança então, nem pensar...
-O que eu tenho mal dá pra todos meus filhos...
-Olha, se a senhora quiser, posso te dar o endereço da nossa associação para podermos te ajudar com qualquer coisa que precise...
-Imagina moço, eu não teria coragem de tirar a ajuda dos outros que tão precisando mais que eu...

Capítulo Trinta e Oito - Poema Circular

Capítulo Trinta e Sete - Não é a coisa mais original do mundo, mas vá lá...

O ferreiro chega em casa com muita fome depois de um dia de trabalho:
-A janta já tá pronta?
-O apressado come cru.
-Pois eu podia comer até um cavalo. Sem cozinhar mesmo.
-Pronto. Tá aqui.
-Hum, mas está delicioso!
-É que a fome é o melhor tempero...
-Mal posso esperar pelo assado...
-Quem espera sempre alcança...
-A esperança é a última que morre...
-Ah, deixa de reclamar e vai lá buscar a carne.
E o ferreiro foi buscar o espeto com a carne. Espeto de pau, é claro.

Capítulo Trinta e Seis - Briga de Rua

-Vem cá se for homem!
-Quiquié, seu viadinho? Larga essa faca aí que eu vou!
-Só largo se você largar essa granada aí...
-Ah, a moçoila tá com medo de uma granadinha, é?
-Ah, seu filho da puta! Eu vou te pegar!
-Filho da puta? É a tua mãe que tá na zona!
-Por que roubou o lugar da tua vó!
-Ei! Não enfia minha finada vó no meio, não!
-Então tá! Seu... seu... seu brocha!
-É? Não foi o que tua mulher me disse ontem à noite...
-Ah, seu mentiroso do caralho!
-Corno!
-Retardado!
-Chifrudo!
-Boboca!
-Boboca?!
-É...
-Você tem cinco anos de idade, é?
-Por quê?
-Aff... deixa pra lá, vai... toma aqui minha granada que eu vou pra casa...
-Tá fugindo, é? Ficou com medo? Volta aqui que eu vou te pegar...

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2006

Capítulo Trinta e Cinco - Liberdade é uma palavra perigosa (título provisório)

Amarelinho era um passarinho. Um pássaro canoro qualquer, azul, mas com uma manchinha amarela no peito, razão do seu nome. Ainda pequeno, Amarelinho foi achado machucado e caído no meio de uma rua de uma cidadezinha interiorana e encantou o seu Adamastor, carpinteiro de profissão, com o piado agudo. Seu Adamastor cuidou dele e o colocou numa velha gaiola de madeira e lá Amarelinho cresceu, cantando cada vez mais bonito. Amarelinho não conhecia outra vida que não aquela, cantando e bebendo água fresca todo dia.
Mas o tempo, que não sabe fazer outra coisa a não ser passar e passar, passou. E o pássaro envelheceu. Envelheceu mais do que o seu dono, que era gente. E todo mundo sabe que gente costuma viver mais do que passarinho, especialmente os passarinhos que vivem em velhas gaiolas de madeira. E foi ficando assim menos vigoroso, meio sem voz, dava até pena de ver. Daí seu Adamastor, que era gente mas também tinha coração, resolveu soltar o bichinho. Foi até o quintal e abriu com cuidado a gaiola. Amarelinho estranhou o rangido, foi até a abertura e colocou o bico pra fora. O velho animou:
-Vai, 'marelinho, vai. - e fez um gesto com a mão pra ele ir embora.
Amarelinho pareceu se animar, abriu as asas e foi direto ao chão. O carpinteiro o juntou e o levantou bem alto com a palma da mão. Dessa vez ele conseguiu voar. Voou bem alto, como se nunca tivesse voado na vida. Passou por cima da casa e quando chegou do outro lado da rua, o filho do vizinho, moleque levado, acertou Amarelinho com uma pedra lançada com o seu estilingue (ou atiradera, eu não sei que lugar ficava essa cidade).
E uma lágrima deve ter caído do olho cansado do seu Adamastor por ver seu passarinho livre pro resto da vida.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2006

Capítulo Trinta e Quatro - Interlúdio Nonsense

-Vó, abaixa essa música que eu quero dormir...
-Mas é música de ninar...
-Vó, eu já tenho 15 anos!
-Ah, termina de tomar sua mamadeira e pára de me incomodar...

domingo, 19 de fevereiro de 2006

Capítulo Trinta e Três


Choveu.

Capítulo Trinta e Dois - Inconveniência

-Alô?
-Boa tarde, aqui é da New Hiper Bit Professional Courses. Meu nome é Alessandra e hoje temos uma promoção especial só pra você. Como é o seu nome?
-Ahn? Ah, meu nome é Bucetildes.
-No duro? Quer dizer, sério?
-Mas se eu tô dizendo! Olha, se for pra ficar caçoando do meu nome, eu vou desligar!
-Não, minha senhora, me desculpe. É que esse é um nome meio estranho.. quer dizer, um nome que não se ouve todo dia.
-Olha, minha filha, eu sei que o meu nome é esquisito, não precisa ficar me lembrando, né? Afinal, o que você quer?
-Ah, sim. Nós temos uma promoção imperdível. Fazendo o curso de Automação Empresarial Trilingue, nívels 1, 2 e 3, você ganha a matrícula grátis!
-Minha filha, eu não tô interessada em curso nenhum.
-Calmaí! Se você fizer a matrícula ainda hoje ganha também um brinde especial!
-Mas eu não tenho dinheiro nenhum, meu marido morreu e me deixou uma pensão miserável, aquele pão-duro...
-Pois então! Essa é a oportunidade perfeita para a senhora arranjar um emprego. Nosso curso tem uma garantia registrada em cartório: se a senhora não arranjar emprego depois do nosso curso devolveremos o seu dinheiro após a comprovação que o curso não foi útil em nada pra senhora.
-Mas eu mal consigo sair de casa pra pegar o dinheiro da pensão, com todos esses problemas de saúde que eu tenho, imagina então arrumar um emprego!
-Bem... mas a senhora não tem filhos?
-Tenho sim, mas..
-Pois então! A promoção é válida pra eles também.
-É, mas eu não faço a menor idéia de onde eles estão, me abandonaram aqui nessa casa velha. Ingratos.
-Puxa, mas, perdoe-me a curiosidade: o que a senhora faz o dia todo?
-Bom, agora mesmo eu estava me preparando pra tomar todos os comprimidos que eu tenho aqui em casa.
-Só um momento, minha senhora.
-O que você vai fazer?
-Vou transferir sua ligação pro CVV. A New Hiper Bit Professional Courses agradece a sua atenção. Tenha uma ótima tarde!

Capítulo Trinta e Um - Costumes estranhos

Desde a escola ele tinha a irritante mania de ler em voz alta. Foi expulso pelo menos umas três vezes da biblioteca por causa disso. E duas vezes do cinema, antes de desistir de assistir a filmes legendados.
Mas fora isso levava uma vida normal. Se casou, teve uma filha e a levou pra passear no parque. Enquanto a filha brincava, ele lia o jornal. Enquanto ele lia, a filha ouvia. E quando a filha ouvia, ela não entendia nada. Dólar, gente morta, crise, gente reclamando da qualidade da tv e principalmente o tal do "governo" que tanto falavam.
-Pai, o que é governo?
-O quê?
-Que que é o governo que você falou?
-Ah, governo são as pessoas que o povo escolhe pra cuidar dele.
-Pai, o povo é criança?
-Não, o povo é o conjunto de todas as pessoas que moram num lugar.
-E o povo não sabe se cuidar sozinho?
-Sabe. Eu acho que sabe. Mas tem gente que se aproveita do povo.
-E daonde vem essa gente que se proveita do povo?
-Do povo mesmo.
-Ué? O povo se proveita do povo?
-É que tem gente que não entende que faz parte do povo...
-E o governo bate "ni" quem se proveita do povo?
-Não, mas põe na cadeia.

Cinco minutos depois a garota volta à perguntar?
-Pai, e se o governo se proveitar do povo?
-O quê?
-E se o governo se proveitar do povo? Quem põe o governo na cadeia?
-Teoricamente, o resto do governo.
-Que é "toricamente"?
-É teoricamente. É quando uma coisa devia ser de um jeito mas é de outro.
-Que nem o pudim que a mãe fez ontem?
-Mais ou menos...
-Então quem põe o governo na cadeia de verdade?
-De verdade? Ninguém...
-Então o governo pode se proveitar do povo sem ir pra cadeia? Mas não é pra isso que o governo existe?

Ele nunca mais leu em voz alta.